Wednesday, February 7, 2007

O Brasil e a América Latina

O BRASIL NO CONTEXTO DA AMÉRICA LATINA


No dia em que se comemora a vitória portuguesa no jogo de futebol que, ontem, reuniu, amigavelmente, Portugal e Brasil, vale a pena passar em revista as relações luso-brasileiras e, particularmente, o lugar que estas ocupam na política externa brasileira integrada no contexto da América Latina. Vale a pena, pois, analisar o Brasil e, sobretudo, a forma como se enquadra na região em que, quis a Geografia, ele se integra.
Na verdade, inserir o Brasil no contexto latino-americano a que pertence significa, antes de mais, inseri-lo no âmbito mais restrito da América do Sul e, dentro deste, do Cone Sul, como resultado da moldagem étnico-cultural sub-regional reforçada pela união proporcionada pela existência de problemas comuns aos vizinhos. A política externa brasileira ganha, neste sentido, determinante importância para situar-se aquele que, pelo peso geo-económico e demográfico, pela dimensão do mercado interno, pela avaliação dos indicadores económicos e políticos, bem como da imensidade dos problemas e desafios, e bem assim dos atributos tradicionais do poder que vai exercendo, é o actor de maior relevância relativa da região. E aquele cuja política externa maior continuidade historicamente tem apresentado, servindo esta, desde o rompimento com Portugal, em 1822, como instrumento através do qual os governos manejam os destinos do país, mantendo a paz ou fazendo a guerra, administrando os conflitos ou a cooperação, proporcionando o crescimento e o desenvolvimento económicos ou o atraso e a manutenção das estruturas de dependência[i].
Assim, hegemónico na região, o Brasil, desde a época das independências até cerca dos anos 1930, inseriu-se internacionalmente de forma semelhante aos vizinhos latino-americanos, através do modelo liberal-conservador de trocas de produtos primários por produtos manufacturados dos países industrializados, produzindo e consolidando estruturas hegemónicas de dominação e dependência, sobre esses países, por parte da Grã-Bretanha, numa primeira fase e dos Estados Unidos (EUA), numa segunda, sendo amplamente marginal a relação com Portugal, que em 1825 reconhecia a independência brasileira e, em 1891, o regime republicano daquele que fora sua colónia.
Apenas a partir do fim da Guerra do Paraguai (1964-1870), a Argentina, então estruturada como Estado Nacional Soberano, viria rivalizar com o Brasil a hegemonia na região, o que motivaria uma política externa brasileira aguerrida, fomentada pelas pretensões norte-americanas de, segundo a doutrina do Big Stick de Roosevelt, que Truman não tardaria a adaptar para a do containment, estender à região a influência que desejaria ver exercer-se sobre o todo do continente americano. O Brasil posicionar-se-ia, no equilíbrio de divergências da época, procurando salvaguardar os interesses nacionais de hegemonia sobre a região e, sobretudo, acautelar a internacionalização dos rios Paraná e Paraguai – vitais para o contacto regular do Mato Grosso com o resto do território brasileiro –, ao mesmo tempo que acompanhava a influência argentina sobre o Paraguai e o Uruguai, a evolução da Guerra do Salitre (1879-1884)[ii], intervindo sempre que necessário fosse, contra a Argentina, para manter em Assunção e Montevideu governos que lhe fossem favoráveis e solucionar favoravelmente a questão dos limites das Missões – vitais para a segurança e comunicação do Rio Grande do Sul com o resto do território –, e contra o Peru, a partir da Amazónia, enquanto caía por terra o projecto do Barão do Rio Branco de criar, com a Argentina e o Chile, o Pacto ABC (1905), como forma de alcançar e garantir a paz.
A revolução de Setembro de 1930, que reunindo o apoio civil e militar, colocara na liderança do Brasil Getúlio Vargas (1930-1945), daria início ao movimento de mudança do modelo brasileiro de inserção internacional, acompanhado por idêntico trajecto dos vizinhos, já que tinham início, ainda que incipientes, os processos de industrialização que a Guerra do Chaco (1932-1935), em torno do petróleo, viria fomentar, aguçando, todavia, simultaneamente, as ambições hegemónicas do Brasil, da Argentina e dos EUA, enquanto a Bolívia, principal interessada, se via constrangida a firmar os tratados que as potências regionais lhe impunham: com o Brasil, para a construção ferroviária que ligaria Corumbá a Santa Cruz de la Sierra; com a Argentina, para idêntica construção ligando Yacuiba e Santa Cruz de la Sierra.
O Segundo Conflito Mundial desempenharia papel central no posicionamento internacional do Brasil. Ao mesmo tempo que Vargas vendia, a preço elevado, o apoio brasileiro aos Aliados, aumentando a margem negocial da América Latina como um todo, constrangida a adoptar semelhante comportamento, o modelo desenvolvimentista iniciava-se no Brasil, bem como nos restantes países da região, de acordo com o qual a substituição das importações, meio para alcançar-se o desenvolvimento económico, funcionava como variável dependente deste. Desenvolvido com Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), sucessor escolhido por Getúlio, que regressaria ao poder em 1951 – onde permaneceria até 1954 – e, sobretudo, por Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961), que ascenderia à Presidência após um período de instabilidade em que ocupariam o cargo Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos, o Brasil de Kubitschek procuraria congregar os vizinhos latino-americanos em torno da Operação Pan-Americana como forma de constranger a potência norte-americana a prestar-lhes maior atenção. Provocando, como resposta, a incipiente Aliança para o Progresso, o sucessor de Kubitschek, Jânio Quadros, depressa optaria pela política externa independente, procurando provocar uma transformação qualitativa do comportamento da América Latina face às negociações internacionais em geral e com os EUA em particular, de modo a retirar vantagens do ordenamento bipolar do sistema internacional.
Quadros viria, também, alterar a postura de Vargas, Café Filho e Kubitschek relativamente à questão colonial portuguesa. Desde Vargas, efectivamente, que a postura portuguesa havia sido defendida pelo Brasil nas Nações Unidas, o que possuía elevado peso político, em virtude de o Brasil ter um dia sido também colonizado por Portugal. Quadros, contudo, ex-governador de São Paulo, centro dos interesses cafeeiros do país, mostrava-se sensível à defesa de tais interesses na arena internacional (especialmente num momento de crise aguda do sector, em virtude da concorrência, no mercado mundial, do café africano), relegando para plano secundário as relações com Portugal, ao mesmo tempo que, de tendências esquerdizantes, pretendia o restabelecimento das relações do Brasil com a URSS e apoiava o regime de Fidel Castro.
Não tardaria, porém, que Jânio Quadros, e depois João Goulart, se vissem constrangidos a retirar-se do poder pela acção do golpe que, em 1964, colocaria em seu lugar Castello Branco (1964-1967), que fundaria, na doutrina das fronteiras ideológicas, o alinhamento do Brasil aos Estados Unidos, colocando um ponto final na política externa independente[iii].
A luta em nome das fronteiras ideológicas traduziu-se, no Brasil dos anos 60, na abolição da aspiração nacional ao estatuto de potência, que a sucessão de Castello Branco pelo general Costa e Silva, em 1967, viria finalizar, resgatando o interesse nacional como fundamento essencial de uma política externa que só não alcançou a plenitude soberana porquanto o novo governo vinculara a orientação externa do Brasil ao poder emergente dos povos atrasados, numa associação que esperava ver frutificar, em virtude de considerar-se, neste governo, que o conflito Leste-Oeste havia-se deslocado para o centro-periferia, convindo, por conseguinte, reforçar-se o poder e ampliar-se a acção do Sul periférico através de uma actuação resoluta no seio das Nações Unidas, particularmente da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD).
A partir daqui, o desenvolvimento e o pragmatismo guiariam a política externa brasileira, entrando o relacionamento Brasil-Portugal numa fase de algum progresso económico, pese embora as divergências políticas em torno da questão colonial, enquanto o desenvolvimentismo caminhava a passos largos. O Brasil, depois de ver em funcionamento pleno o complexo siderúrgico de Volta Redonda (cuja construção havia sido sustentada pelos créditos norte-americanos), iniciava as obras em Itaipú, culminando o processo de aproveitamento do rio Paraná, onde já estava a construir o complexo hidroeléctrico de Urubupungá – integrado pelas represas de Jupiá, Ilha Solteira e Três Irmãos – visando a irradiação do processo de industrialização do país, de São Paulo em direcção ao Oeste e ao Centro-Sul da Bacia do Prata, no momento em que Garrastazu Médici (1969-1974) sucedia a Costa e Silva, orientando-se pelo nacionalismo de direita e tendo, internamente, intensificado a repressão contra qualquer oposição ao regime, fazendo o conceito de poder refluir no sentido da introspecção e da prospectiva, na consideração de que, autónoma, a potência deve ser exercida em perfeito dimensionamento com a grandeza nacional. Convicção que Ernesto Geisel viria abandonar, na perspectiva de que o poder deve ser exercido à medida da real dimensão do país. O desequilíbrio da região tornava-se, não obstante, evidente, beneficiando o Brasil, que restabelecia a hegemonia que um século antes mantivera sobre a Bacia do Prata, com a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai a submeterem-se à sua vontade, enquanto a arqui-rival argentina se enredava nas contradições que a debilitavam e viriam a determinar a resolução do problema do aproveitamento dos recursos hídricos da Bacia do Prata, no final dos anos 1970, início da década seguinte, já com João Baptista de Oliveira Figueiredo, de modo favorável ao Brasil. Ainda que determinando o início consequente da integração sub-regional, este seria, também, o momento em que o Brasil, engajado na formação de uma Nova Ordem Económica Internacional (NOEI) – proposta mexicana de 1981 – defendia, nos fora multilaterais, a segurança económica colectiva, de modo a conseguir que, se os ricos não quisessem colaborar na resolução do status quo injusto, ao menos não atrapalhassem os seus esforços para eliminar os obstáculos ao desenvolvimento. Simultaneamente à defesa do ambiente, do desarmamento, do desenvolvimento sustentável e dos direitos humanos, os novos temas que compunham a agenda da globalização e para os quais a diplomacia brasileira se voltava, mantendo a postura anticolonial que defendia, apesar dos avanços do relacionamento com Portugal, especialmente em virtude da assinatura de vários acordos bilaterais e da troca de visitas oficiais entre os líderes das duas Nações.
Desde a inflexão da política externa brasileira em 1967, no sentido do desenvolvimento e do pragmatismo, intensificaram-se os contactos do Brasil com o mundo, ainda que o pragmatismo não permitisse eleger áreas prioritárias, antes aceitá-las por aquilo que pudessem render de vantagens ao nível do domínio económico, do comércio externo, dos serviços, dos fluxos de capitais, da ciência e da tecnologia.
Assim, embora importantes, as relações com os EUA foram perdendo peso relativo, especialmente por ter o Brasil sabido encontrar novos parceiros em condições de oferecer recursos e vantagens, tecnologia e mercados, quer no Norte, quer no Sul. O Brasil passava, desta forma, e pela primeira vez na história da sua política externa, das intenções à efectiva universalização de relacionamentos, encontrando, na Europa – Ocidental e Oriental – e no Japão, possibilidades novas que passariam a ser exploradas, numa estratégia de inserção internacional que reservava ao Sul funções complementares às do Norte, determinando, consequentemente, uma aproximação à América Latina.
O Brasil impulsionaria, deste modo, a criação, em 1967, do Mercado Comum Latino-Americano e a transformação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em instrumento efectivo de cooperação, enquanto firmava, em 1969, o Tratado da Bacia do Prata, com a Argentina, o Paraguai, o Uruguai e a Bolívia, procurando ainda cooperar nos órgãos regionais, em associação com os EUA, para implementar o Consenso de Viña del Mar e reforçar a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC). Simultaneamente a esta política económica coerente e contínua, que buscava actuar em vista de objectivos precisos, o Brasil não deixava de exercer os atributos da sua potência sobre os restantes países da região: surgiam os primeiros atritos com a Argentina a propósito da integração física da Bacia do Prata, iniciavam-se os raptos de aviões brasileiros para Cuba, as Forças Armadas viam-se ocupadas com o terrorismo nos órgãos continentais e o país apoiava golpes de Estado contra movimentos de esquerda em países vizinhos.
Perante estes problemas, o Brasil foi deslocando a sua actuação, do âmbito multilateral, para o pessoal, dando forma a inúmeros projectos de desenvolvimento bilaterais: com o Paraguai (hidroeléctrica de Itaipú, pelo Tratado de 1973); a Bolívia (compra de gás e complementação industrial, pela Acta de Cooperação de 1973); a Colômbia (através de estudos para exploração binacional do carvão, de 1973); o Uruguai (projectos de desenvolvimento das bacias da Lagoa Mirim e do Rio Jaguarão); e ainda um Acordo de Cooperação com os Países da Bacia Amazónica (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), assinado em Julho de 1978, por forma a acoplar a cooperação brasileira ao Pacto Andino (1969). Projectos que, impostos pelas visões geopolíticas de Golbery do Couto e Silva, reforçavam a posição do Brasil na Bacia do Prata, fazendo a Argentina estremecer, sobretudo quando o Brasil recusou a proposta portenha de cooperação nuclear de 1975, considerada pelos líderes brasileiros de pouco interesse, uma vez concluído semelhante acordo com a Alemanha.
Ao mesmo tempo, o Brasil iniciava as tentativas de penetração na África (finda a fase exploratória dos anos 1970) e no Médio Oriente, para o que terão contribuído as posturas do país relativamente à questão colonial, enquanto acercava-se também da Ásia, assinando com a República Popular da China o primeiro acordo comercial em 1978, marco de uma relação que cresceria amplamente na década seguinte, enquanto, relativamente a Portugal, mantinham-se as visitas oficiais e a assinatura de acordos vários, muitas vezes sem real dimensão prática e concretização.
De facto, o Brasil assumia o novo relacionamento com a frente dos povos atrasados buscando superar dependências e reforçar a autonomia dos sectores energético, do comércio externo e das tecnologias avançadas.
A subida ao poder, nos EUA, de Ronald Reagen (1980-1988) viria bloquear esta trajectória. Convencido da necessidade de recuperar a hegemonia norte-americana, Reagan colocaria um ponto final no diálogo N-S, na proposta da NOEI e em toda e qualquer tentativa de cooperação N-S.
Os vectores de estrangulamento histórico do desenvolvimento nacional brasileiro tornar-se-iam, a partir daqui, perfeitamente evidentes: a dependência energética do exterior, especialmente no referente ao petróleo bruto, e os serviços da dívida externa[iv], crescentemente preocupantes e impeditivos da aplicação de recursos em investimentos produtivos[v].
O modelo da política externa vinculada ao desenvolvimentismo evoluía, assim, para uma fase de crise e de contradições, passando o Brasil – como de resto a maioria dos PVDs – a sofrer os efeitos perversos do sistema internacional, no qual passavam a ser sujeitos passivos, não obstante o influxo positivo do Itamaraty relativamente às políticas e possibilidades do comércio externo[vi].
Em razão deste novo condicionalismo internacional, o Brasil estabeleceu novas parcerias com o Iraque, o Paquistão, a Associação de Países do Sudeste Asiático, a África do Norte, o Próximo Oriente e a URSS e reforçou os vínculos com o Sul, sobretudo com a China (timidamente iniciado com Geisel e fortalecido com Figueiredo) e mais ainda com a América Latina de um modo geral. A crise da dívida externa, a esterilização do diálogo N-S, a intervenção norte-americana na América Central e no Caribe, a contra-ofensiva britânica sobre as Malvinas/Falklands, apoiada pelos EUA, e as retaliações norte-americanas contra a Argentina uniram o continente latino-americano e, neste contexto, ganharam forma os Consensos de Cartagena e de Viña del Mar, bem como os Grupos Contadora (México, Colômbia, Panamá e Venezuela) e Apoio (Argentina, Uruguai e Peru), vindo o Brasil a aderir a este último em 1985, o qual integrar-se-ia depois no Grupo Contadora. Simultaneamente, o Brasil chegava a acordo com a Argentina quanto ao aproveitamento dos rios da Bacia do Prata, prestava assistência económica e militar ao Suriname[vii] e sustentava posições, na América Central, em confronto directo com a postura norte-americana.
Em 1989-1990, todavia, o mundo abalaria perante as transformações ocorridas na Europa de Leste. O desmoronamento da União Soviética e a derrocada do comunismo, alterando o quadro geopolítico mundial, produziriam efeitos, também, sobre a América do Sul, designadamente sobre a força das ditaduras locais[viii] e sobre a potência brasileira, onde o fim da Ordem Mundial dos Pactos Militares consubstanciou a virada democrática, com alternância no poder e as primeiras eleições directas para a Presidência da República[ix].
A situação económica brasileira, porém, não havia ainda revertido o movimento recessivo do final da década de 80, o que, na verdade, acontecia um pouco por toda a América Latina e levara o Brasil a decretar moratória parcial a 20 Fevereiro 1987 e lançara a Argentina numa espiral de hirper-inflação de 200% ao mês.
Na verdade, diante do novo cenário internacional, a política externa brasileira parecia perdida, incapaz de manter a racionalidade e a continuidade que, durante 60 anos, lhe havia impresso, na busca incessante pelo desenvolvimento nacional. O Itamaraty não reagiu com facilidade ao novo contexto internacional. O processo de impeachment de Collor de Mello, em 1992, e o hiato do governo de Itamar Franco até 1994 contribuiram para a indefinição.
Apenas a partir de 1995, com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e a continuidade da gestão do ministro dos Negócios Estrangeiros Luiz Felipe Lampreia (1995-2000) o Brasil pareceu capaz de reagir, ainda que sob os postulados neoliberais que, vindos de Washington, dominavam a intelectualidade governamental brasileira desde Collor. Reagindo aos novos condicionalismos externos, essa reacção não era, assim, coerente e firme. Encerrando o ciclo desenvolvimentista da política externa em 1989, as novas orientações externas, moldando o Estado Norma,l apareciam confusas e contraditórias. Faziam crer que a responsável pela crise do endividamento era a estratégia tradicional da racionalidade desenvolvimentista e, por isso, esta deixava de ser o centro nevrálgico da política do governo, de ora em diante marcada pelas directrizes de Washington.
Desde logo os EUA, sentindo-se lesados pela crise económica da América Latina[x], visando reduzir o desequilíbrio da sua Balança Comercial, promoveram a liberalização do comércio exterior, através da proposta, de 1990, do presidente George Bush, da Enterprise For The Americas Initiative. O Objectivo era a criação de uma zona de comércio livre do Alaska à Terra do Fogo (Western Hemisphere Free Trade Area) que permitiria a abertura, aos exportadores norte-americanos, de novos mercados consumidores e, com o mesmo objectivo, promoveram o Washington Consensus [xi], conjunto de medidas neoliberais impostas pelo governo norte-americano aos Estados latino-americanos e que estes se viam constrangidos a adoptar e aplicar efectivamente. Assim ocorrera já no Chile, nos anos 1960-70, na Bolívia, desde 1985, no México, desde 1988, vindo, em 1989, a registar-se na Venezuela, na Argentina e no Brasil de Carlos Saúl Menem e Fernando Collor de Mello, respectivamente, estendendo-se, em 1990, ao Peru.
Foi assim que, ao assumir a Presidência, Collor tratou de acautelar os interesses dos grupos económicos[xii], liberalizando a entrada de capitais estrangeiros e a privatização de empresas públicas, a que os capitais portugueses acorreram grandemente, com destaque para as áreas financeira e seguradora (abrindo caminho para a assinatura do Acordo Ortográfico em 1990, para a criação da CPLP, em 1996, e para a assinatura do Tratado de Cooperação e Amizade, em 1998, relançando as relações luso-brasileiras que, ultrapassando o domínio puramente económico, visavam adentrar pelo vector cultural). O Brasil de Collor tratou, também, de aliviar o contencioso que o opunha aos Estados Unidos[xiii] em matéria de informática, meio ambiente, armas nucleares, propriedade intelectual; embora não alinhasse, incondicionalmente, com todas as pressões norte-americanas. Não se tendo envolvido em qualquer operação de guerra aquando da crise do Golfo no ínicio da década de 1990, o Brasil também condenou publicamente a Lei Torricelli[xiv], adoptando, durante a gestão Collor, uma postura liberal que, contudo, não incluía, como parâmetro, o alinhamento automático aos Estados Unidos, como ocorrera durante o governo do marechal Castello Branco (1964-67), e como viria a ocorrer na Argentina de Menem, no que o sociólogo argentino Carlos Escudé baptizaria de Realismo Periférico[xv].
O Brasil encontraria, neste contexto, nos fluxos de capitais, nova fonte de dependência, ao mesmo tempo que revigorava o multilateralismo, perante o declínio do bilateralismo nas relações internacionais, determinando que o caminho preparado para que o entendimento argentino-brasileiro em torno da resolução do contencioso das águas deslanchasse para a integração regional centrada sobre o eixo Brasil-Argentina[xvi].
Politicamente, a aproximação entre os dois países afigurava-se benéfica para o Brasil, já que permitiria acabar com as tensões que sucessivamente toldavam as relações bilaterais e, por conseguinte, contribuiria para a estabilidade política e estratégica da região, ao mesmo tempo que o Brasil descortinava, no estreitamento das relações bilaterais, a possibilidade de exercer influência sobre o comportamento da Argentina, em especial em virtude da política exterior de Menem, cujas acções em relação aos Estados Unidos e ao ainda estruturante North American Free Trade Agreement, NAFTA, poderiam vir a criar constrangimentos aos interesses brasileiros[xvii]. No campo económico, o estreitamento de relações entre o Brasil e a Argentina abria-lhe perspectivas e oportunidades novas, em virtude da expansão das exportações brasileiras de produtos manufacturados, para além de conferir-lhe um maior poder de negociação da dívida externa na arena internacional, sendo ainda de salientar o compromisso nuclear a que entretanto os Dois haviam conseguido chegar.
Na realidade, o Brasil procurava um novo modelo de desenvolvimento nacional, através da reestruturação industrial e da ampliação do mercado interno, em face da perda de competitividade da sua produção industrial e das dificuldades crescentes em fazer as exportações nacionais alcançarem os mercados tradicionais – Estados Unidos e Europa Comunitária[xviii].
Por outro lado, o Brasil vislumbrava, na integração com a Argentina, ganhos de competitividade externa e capacidade de atrair os investidores estrangeiros, pretendendo, ainda, assegurar a influência que exercia sobre a região. Efectivamente, a atracção que o NAFTA exercia sobre os países vizinhos, fazendo recear o desvio de comércio que afectaria, negativamente, as exportações brasileiras e, por conseguinte, os equilíbrios que na região se procuravam construir, ao mesmo tempo que os EUA reforçavam as tentativas de intervenção lançando um Plano Colômbia que vinha adensar, militar e politicamente, a proposta de Bush de formação de uma área hemisférica de livre comércio, em virtude da Iniciativa para as Américas, assim como o fortalecimento dos blocos regionais de integração um pouco por todo o Mundo, em função do impasse nas negociações do Uruguay Round, eram factores que se afirmavam no sistema internacional e faziam temer pela posição de liderança do Brasil no contexto regional e sub-regional. Céptico em relação a este projecto, em contraste com os restantes países da região, o Brasil despertou para o receio de uma dispersão de esforços em matéria de construção de uma resposta conjunta a dar aos problemas económicos comuns por que todos passavam, o que o levou a procurar conciliar, num mesmo sentido, as acções desses países visando enformar uma resposta única, e em bloco, à Iniciativa para as Américas.
Gerava-se, desta forma, uma visão pragmática favorável à integração, não já meramente bilateral, mas multilateral, favorecida pela inexistência, entre os Dois, de interesses e objectivos conflituais, que pudessem, de alguma forma, concorrer para desestimular o processo. Daqui resultaria a evolução do carácter estruturalista da integração inicialmente projectada para a filosofia do Estado Normal, que prioriza o comércio e o regionalismo aberto, na substituição definitiva do modelo desenvolvimentista pelo neoliberal[xix].
Naturalmente, não esteve alheia a estas condicionantes a circunstância de se afigurar a possibilidade de o Uruguai e o Chile virem, também, a participar da coordenação da resposta conjunta à Iniciativa para as Américas. Esta hipótese – tornada realidade relativamente ao Uruguai, que sempre manifestara o desejo de participar no processo de integração que o Brasil e a Argentina negociavam, ainda que inviabilizada no caso do Chile, em virtude da escolha chilena de desenvolver o Estado Logístico – conferiu um grau de pragmatismo ainda mais acentuado ao processo integracionista que unia o Brasil e a Argentina, ainda que a institucionalização das relações Brasil-Argentina satisfizesse plenamente os objectivos dos líderes brasileiro e argentino e a regionalização não era, de facto, uma vontade política expressa por nenhum deles.
A conjuntura regional, porém, acabou por conduzir à assinatura, em Março de 1991, do Tratado de Assunção, entre o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, dando origem ao Mercosul[xx], no seio do qual a grandeza do Brasil contrasta vivamente com a performance internacional dos restantes parceiros[xxi].
Em 1994, Carlos Menem ponderaria, mesmo, o abandono do Mercosul para integração posterior da Argentina no gestante NAFTA, criando dificuldades ao relacionamento com o Brasil, enquanto este adoptava uma postura independente e autónoma. Criticando, optando pela neutralidade ou mesmo opondo-se às iniciativas norte-americanas, o Brasil reagira fortemente ao anúncio da criação do NAFTA, tornando mais ousado o objectivo do Mercosul, ao procurar convertê-lo numa área dotada de iniciativa própria, mantendo a Argentina afastada dos Estados Unidos e, logo em 1993, lançaria a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), como forma de contrabalançar o efeito de atracção que o ainda gestante NAFTA exercia já sobre muitos países da América Sul, como o Chile, a Venezuela e a Argentina. O NAFTA convertia-se, para muitos países sul-americanos, em verdadeiro canto da sereia, procurando o Brasil oferecer uma integração regional ampliada para criar, a estes países, alternativas às pressões externas que desejavam vê-los submetidos a planos liberais ortodoxos de ajuste – necessários para poderem manter relações privilegiadas com os EUA e aderir ao NAFTA.
Por outro lado, o Brasil estabeleceu, com os países sul-americanos e africanos, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), numa estratégia de círculos concêntricos a partir do Mercosul e iniciou negociações com a UE (que viriam a culminar com a assinatura do Acordo-Quadro Inter-Regional de Cooperação UE-Mercosul, em Dezembro de 1995).
A estratégia brasileira criava atritos com os EUA que, vendo-se perto de perder a área de influência da América Latina, retomara, em Dezembro de 1994, a proposta de Bush de criar uma zona hemisférica de livre comércio que receberia o nome de ALCA[xxii].
O Brasil procurou, apesar disso, evitar o confronto aberto com os EUA e, nessa lógica, firmou os Tratados de Não Proliferação Nuclear e controle balístico, aceitou que sobre algumas exportações sensíveis fossem exercidos controles, começou a participar nas missões de paz das Nações Unidas e abandonou a postura defensiva dos governos militares relativamente ao narcotráfico e aos direitos humanos, numa alteração de postura produzida a partir de Collor de Mello e, sobretudo, quando Fernando Henrique ocupou a Presidência da República, acrescentando, ao aprofundamento das relações com a América do Sul no seio do Mercosul, a melhoria das relações bilaterais com os EUA, estabelecidas ao menos a um nível de cordialidade.
A verdade, porém, é que apesar de tudo, o sucesso da integração no Cone Sul foi apagando os incentivos à construção do entendimento do Brasil e da Venezuela, a Norte. O afastamento geográfico entre o Brasil e a Venezuela, assim como os condicionalismos a que sempre estivera sujeita a História platina, determinando uma integração bastante mais sustentada por laços históricos do que a ligação Brasil-Venezuela – sobretudo por esta ter estado, durante muito tempo, voltada para o Caribe, e permeada por longos períodos de isolamento e ainda a circunstância de dela esperarem-se resultados menos imediatistas[xxiii] -, foram factores que determinaram o esmorecimento da ligação brasileiro-venezuelana, perante a importância crescente da integração promovida a Sul pelo eixo Argentina-Brasil.
O Brasil, onde entretanto a crise energética despontava, sofreria com a grave crise que, em 2001, viria abalar fortemente a Argentina, sobretudo, porque, ante o receio de que a Argentina declarasse moratória e/ou desvalorizasse o Peso, a desconfiança dos investidores estrangeiros concorreu para nova desvalorização do Real.
Passada, todavia, a dança das cadeiras, que dera à Argentina cinco presidentes em duas semanas, o senador peronista Eduardo Duhalde era eleito pelo Parlamento, com ampla maioria, para concluir o mandato de Fernando de la Rua, que terminaria em Dezembro de 2003. O governo Duhalde não se deixava instrumentalizar por Washington contra o Brasil, colocando os entendimentos na América do Sul, designadamente no seio do Mercosul e, mais especificamente, com o Brasil, em lugar de destaque na política externa argentina.
Com a substituição de Eduardo Duhalde por Néstor Kirchner, em Dezembro de 2003, as relações em eixo Brasil-Argentina sofreriam ainda mais acentuada melhoria. Havia quase um ano na Presidência da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, empossado em Março de 2003, mantinha a escolha do aprofundamento das relações regionais – das quais, naturalmente, sobressaem as relações com a Argentina – como prioridade da sua política externa, desviando-se das orientações de Fernando Henrique Cardoso, ainda que, internamente, as orientações tivessem sido mantidas.
Dando prosseguimento à política económica de Fernando Henrique, o governo Lula não só não rompeu com a orientação liberal do segundo mandato de Cardoso, como inclusive, a aprofundou. O primeiro governo Lula exerceu um ajuste fiscal ainda mais forte que o realizado sob a era Cardoso, aplicando uma política monetária ainda mais rígida e retomou o programa de reformas (tributária, da Segurança Social, de autonomia do Banco Central, laboral, entre outras) de carácter amplamente liberal, que a Administração Fernando Henrique havia suspenso por falta de condições políticas para levar a efeito. Finalmente, embora a retórica da primeira campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) tivesse assentado sobre as políticas sociais e desenvolvimentistas, prometendo transformá-las no centro das preocupações do novo governo, consideradas as insuficiências do anterior, a verdade é que tal não ocorreu e tais políticas não mereceram, da Administração Lula, uma atenção eficiente e firme – como aliás seria de se esperar de um governo de esquerda. A política industrial não chegou a ser definida com clareza, não existe uma articulação entre o Ministério do Desenvolvimento – encarregue de defini-la – e a principal instituição de financiamento de longo prazo – o Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social, o BNDES – e o programa de combate à pobreza Fome Zero revelou-se pouco mais do que um slogan publicitário, em virtude da indefinição de objectivos e meios para alcançá-los e da falta de ligação que demonstrou possuir relativamente aos programas de protecção social do governo precedente.
Ainda que o primeiro governo Lula tenha conseguido, em alguma medida, recuperar a credibilidade do Brasil junto ao mercado – sobretudo tendo em atenção o efeito amplamente nefasto provocado, especulativamente, quando a vitória do PT começara a delinear-se –, a economia brasileira permanece em situação muito crítica e a denominada segunda fase do processo de retoma económica – a fase de crescimento – que teoricamente deveria suceder à fase ortodoxa, de estabilização, permanece ainda incerta, criando dificuldades ao governo, que durante algum tempo não degenerou em problemas insuperáveis graças ao extraordinário carisma pessoal do presidente Lula. Carisma que durante esse tempo impediu que a ansiedade por medidas concretas face ao impasse económico se convertesse em profundo e generalizado desgaste político, que na recta final do primeiro mandato Lula não se conseguiu mais evitar, em razão da sucessão de escândalos que abalaram a credibilidade da Administração Lula, fazendo crer na impossibilidade de uma reeleição para segundo mandato. Os efeitos políticos da situação económica degradante, da gestão ortodoxa da economia, da agenda liberal por que o governo pautou a sua actuação, assim como da pouca relevância que deu às questões sociais fizeram surgir fissuras importantes nas bases parlamentar e sócio-política de apoio do governo[xxiv]. Externamente, a orientação do governo Lula centra-se, como visto já, amplamente, ainda que não exclusivamente, sobre o reforço do Mercosul e das relações com a Argentina.
Na verdade, em torno do então novo governo brasileiro, as expectativas apontavam para a superação dos dilemas brasileiros através do vector essencial da política externa voltada para a América do Sul. A América do Sul surgia como o espaço geopolítico prioritário do projecto nacional brasileiro e, dentro daquele, as relações com a Argentina prometiam melhoras significativas. Chegara-se, mesmo, a afirmar que as relações do Brasil com os vizinhos sul-americanos constituíam o principal objectivo para a diplomacia brasileira nos anos que se seguiriam, especialmente a construção de um espaço regional integrado no sub-continente. Neste sentido, preservar, aprofundar e alargar o Mercosul surgiram como os primeiros passos essenciais a serem concretizados; contexto no qual Argentina, Venezuela, Colômbia e, por último, Chile, surgiram como as prioridades, ainda que o Brasil acrescente, a esta vertente sul-americanista dominante, preocupações de outra ordem, que lhe permitem ampliar a esfera de ambições internacionais, interesses mais abrangentes e responsabilidades regionais (ou mesmo mundiais), como se exige de uma potência. Assume relevância, neste sentido, a defesa da soberania nacional sobre a Amazónia, as relações com as potências regionais da América Latina, a participação nas missões de paz das Nações Unidas, liderando a missão enviada ao Haiti em Junho de 2004, com a África, com os países de expressão oficial portuguesa, no seio da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, entre outros.
Estes elementos constituem a constante da política externa brasileira, que Lula tem mantido. Apostado em substituir o modelo de inserção limitada que predominou na era Cardoso, o Brasil de Lula segue mantendo, porém, os dois elementos que permitem caracterizar a política externa brasileira: o que dá continuidade, regularidade e credibilidade à política externa brasileira, isto é, o desejo de reconhecimento internacional do Brasil como potência média activamente actuante no sistema internacional; e o elemento que resulta da combinação entre o pragmatismo e a flexibilidade, que reúne, à necessidade de alcançar os objectivos, a realização de ajustes.
É verdade que o Brasil, se aspira a um reconhecimento como potência regional e como potência média mundial, explorando a condição geográfica de país-continente, terá que proceder à assunção de posições relativamente aos assuntos que hoje recheiam a agenda mundial. Isto significa que a dimensão comercial – que tem sido a mais explorada nos modos brasileiros de inserção internacional – terá de ser temperada por um matiz amplamente político, do qual fazem parte as opções do país relativamente ao destino do Mercosul e, em particular, à revisão das relações com a Argentina[xxv]. Destes elementos dependerá, certamente, a manutenção da autonomia do Brasil no contexto da globalização, como forma indispensável para a estruturação de um projecto nacional que, ultrapassando o modelo liberal de inserção internacional, lhe confira um verdadeiro Estado Logístico, o qual recupera a autonomia decisória, aceita a interdependência e age internamente segundo os parâmetros desenvolvimentistas, apenas com a nuance de transferir, para a sociedade, as responsabilidades do Estado empresário. Um modelo que, desta forma, permita ao País constituir-se em núcleo de um dos pólos do sistema internacional multipolar, surgindo, assim, como amplamente fundamental, evitar-se a concretização da Área de Livre Comércio das Américas, única forma de resguardar a autonomia do Brasil e da América do Sul e a posição do país como global trader, para um dia transformar-se em global player[xxvi].
A defesa da América do Sul, por oposição às Américas Central e do Norte torna-se vigorosa. E a valorização do conceito de América do Sul, em lugar do de América Latina, recorrente, individualizando-se os dois projectos que existem para as Américas: a expansão radical do NAFTA sob hegemonia norte-americana; a América do Sul, da Colômbia à Terra do Fogo, integrada num espaço económico resultante de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina. Na verdade, a percepção destas duas Américas modelou desde o tempo do Império a política externa do Brasil, que resguardava a América do Sul como sua esfera de influência, e evitava qualquer envolvimento nas Américas do Norte, Central e do Caribe, por constituírem a esfera de influência dos EUA.
Constante da política externa brasileira desde o século XIX, o objectivo de integrar a América do Sul através de um eixo Brasil-Argentina procurou sempre conciliar a existência desse eixo com um relacionamento maduro com os Estados Unidos. Pois que a política do Itamaraty mantém a tradição do pensamento realista, que contém elementos cepalinos (relação centro-periferia) e do pensamento nacionalista do Instituto Superior de Estudos Brasileiros de Hélio Jaguaribe. Política que mantém a percepção da política norte-americana como uma restrição à promoção dos interesses brasileiros na região.
Simultaneamente, a resolução dos problemas postos pelas migrações de Brasileiros em direcção a Portugal, a valorização do património comum destes dois povos, de mais de 500 anos, assente na preservação dos valores imutáveis e na modernização dos laços que os unem constituem, certamente, para o Brasil e para Portugal, garantia de sucessos múltiplos no relacionamento luso-brasileiro, matizando o realismo e o pragmatismo da política externa brasileira com o fervor místico que a Língua comum une e alimenta e sublima no intercâmbio cultural.

[i] É bem verdade que, não obstante aquela continuidade geral, o sector externo não actuou de forma sempre estável em relação à promoção do crescimento e da autonomia sócio-económica do Estado. Períodos houve em que a política externa, restritiva, acabaria por beneficiar alguns segmentos populacionais em detrimento do bem geral da Nação, enquanto em outros mostrar-se-ia mais abrangente e menos conjuntural e, por conseguinte, mais prospectiva.
[ii] Guerra que opusera o Chile ao Peru e à Bolívia.
[iii] Num cenário internacional marcado pelo conflito Leste-Oeste, a preservação da independência nacional pressupunha a aceitação de um certo grau de interdependência, já que, em nome da unidade do bloco ocidental perante o comunismo, qualquer dissidência interna deveria ser evitada. O alinhamento automático aos Estados Unidos era a forma de evitar tal dissidência, na construção de um mundo livre, Ocidente Cristão capaz de enfrentar o inimigo soviético comum.
[iv] O crescimento acelerado da dívida externa no Brasil registou-se em dois momentos: o primeiro (1974-1979) correspondeu aos anos em que os recursos foram destinados ao desenvolvimento da base económica, sobretudo pelas empresas públicas; o segundo (1980-1987) correspondeu ao crescimento da dívida por si só, sob efeito da contratação de empréstimos para prorrogar serviços e pagar juros e spreads vencidos.
[v] Os países desenvolvidos, procurando proteger os respectivos sistemas produtivos e mercados, haviam forjado o conceito de Newly Industrialized Countries (NICs) com que restrigiram o sistema geral de preferências negociado no âmbito do GATT. Tendo o Brasil sido considerado um NIC em 1981, perdia, a partir daí, preferências comerciais na CEE e nos EUA:
[vi] Tendo o Brasil gerado, na década de 1980, o terceiro maior excedente comercial do mundo (apenas precedido do Japão e da Alemanha).
[vii] Para evitar que a crise interna no Suriname fosse resolvida no âmbito da presença cubana no conflito Leste-Oeste, buscando evitar, como sempre fizera, que o conflito bipolar alcançasse a América Latina.
[viii] De tal forma que as ainda subsistentes – paraguaia e chilena – findariam em 1989.
[ix]Seria precipitado, no entanto, falar em democracia consolidada no Brasil pós-Constituição de 1988, porquanto, nesta fase, o jogo político brasileiro estabilizou-se na forma de um conflito precariamente regrado, que se viu obrigado a tolerar a incorporação dos novos actores que eclodiram do complexo tecido social mas que, ao mesmo tempo, deixou a massa inorgânica da sociedade à margem do sistema político, ou, dito de outro modo, “institucionalizou uma competição restrita porque promoveu uma incorporação selectiva na participação política”, de modo a ter-se cristalizado “o hiato entre a sociedade e o Estado, gerando um foco de crises crónico e permanente”. Cfr. RODRIGUES, A.T.; “Modelos Analíticos em Teoria das Mobilizações e Conjunturas Críticas Comparadas: as Directas já e o Fora Collor”, Universidade Federal do Espírito Santo, 1994. A.T.
[x] á que os países desta região haviam deixado de poder importar os produtos norte-americanos, continuando, porém, a exportar nessa direcção, agravando, por conseguinte, o défice comercial dos EUA.
[xi] O Institute for Internacional Economics promoveu, também em 1990, uma conferência de economistas norte-americanos e latino-americanos, destinada a diagnosticar e sugerir medidas de ajustamento que permitissem à América Latina superar a crise. Procurando submeter todo o sub-continente às forças do mercado, anulando a actuação do Estado, tanto como agente económico, quanto como agente regulador da economia, o programa de reformas assim elaborado, o Washington Consensus, consistiu, na verdade, num conjunto de medidas neoliberais impostas pelo governo norte-americano aos Estados latino-americanos e que estes se viam constrangidos a adoptar e aplicar efectivamente. Assim ocorrera já no Chile, nos anos 60 e 70, na Bolívia, desde 1985, no México, desde 1988, vindo, em 1989, a registar-se na Venezuela, na Argentina e no Brasil de Carlos Saúl Menem e Fernando Collor de Mello, respectivamente, estendendo-se, em 1990, ao Peru.
[xii] O que levara a ministra Zélia Cardoso a decretar o congelamento de oitenta por cento dos depósitos bancários provocando, em meio a forte contestação social, o agravamento da recessão económica.
[xiii] Collor procedeu à redução tarifária sem contrapartida por parte dos outros Estados; aprovou uma lei de patentes e propriedade intelectual; assinou o Acordo Quadripartite com a Argentina, criando a Agência Brasileiro-Argentina de Controle e Contabilidade de Materiais Nucleares (ABACC) e integrou a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), aceitando, indirectamente, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP); desactivou o Programa Nuclear Paralelo e fechou um poço, escavado na Serra do Cachimbo, para explosões subterrâneas experimentais; e ratificou, logo depois, em 1993, o Tratado de Tlatelolco, subscrito desde 1966, terminando com as ressalvas então impostas, as quais, ao garantirem ao Brasil o direito de realizar explosões atómicas para fins pacíficos, praticamente o haviam invalidado.
[xiv] Promulgada pelo governo norte-americano para proibir que as filiais de empresas norte-americanas , a partir de outros países, estabelecessem relações comerciais com o governo comunista de Fidel Castro.
[xv] Menem ressuscitaria a doutrina das fronteiras ideológicas e, com ela, a política externa de Ongania e Galtieri, para justificar o realinhamento da Argentina aos Estados Unidos na cinscurstância de, sendo a Argentina um país dependente, empobrecido, endividado, periférico e estrategicamente pouco relevante para os Estados Unidos e as potências do centro, deveria reduzir as confrontações externas de modo a atrair investimentos estrangeiros e facilitar as negociações com as instâncias financeiras internacionais. Assim, ao carácter low profile da política externa de Menem, contrastou a activa política externa brasileira de Collor que, à pax americana, procurava contrapor a pax assente nas Nações Unidas, sem pretender, contudo, a adopção de uma confrontação permanente com os Estados Unidos, o que, todavia, não seria linearmente alcançado. Mergulhada em condições políticas e económicas distintas, desde a queda de Perón, em 1955, que a impediu de desenvolver uma política externa coerente e eficaz, a Argentina enveredava pelo Realismo Periférico como fórmula de alcançar o êxito alcançado nos tempos da República Próspera, quando a unia à Grã-Bretanha uma relação especial. Os resultados alcançados não foram, porém, os programados. As concessões feitas pela Argentica aos Estados Unidos, com vista a apresentar-se como parceiro confiável e, eventualmente, ser integrada no grupo das potências industriais, não lhe renderam benefícios justificativos, tendo avivado a rivalidade com o Brasil, sobetudo em torno da posição de país-chave da potência hegemónica na América do Sul. Comprovava-se a falta de importância que a Argentina merecia dos Estados Unidos, em razão da competitividade de ambas as economias e do isolamento geográfico da primeira, ao mesmo tempo que se tornava evidente que a Argentina era, para os Estados Unidos, estrategicamente menos relevante que o Brasil ou o México.
[xvi] Efectivamente, a liberalização comercial entre os dois países havia sempre obedecido a uma lógica industrial que procurava fortalecer as estruturas produtivas sub-continentais. O modelo de integração bilateral que veio a ser decidido por Sarney e Alfonsín, porém, conciliava a experiência das Comunidades Europeias (criação de um mercado comum e estabelecimento de políticas sectorias comuns com o objectivo de consolidar as estruturas produtivas dos países integrados) com a da Associação Latino-Americana de Desenvolvimento Internacional (escolha de sectores de actividade económica para a redução progressiva das barreiras tarifárias e não tarifárias às trocas). Assim, fizeram acrescer, à perspectiva sectorial, o estabelecimento de políticas comuns a ambos os países e alteraram a lógica eminentemente industrial-produtiva dos sectores, para uma contextualização bastante mais comercial. Na realidade, nem o Brasil nem a Argentina eram particularmente favoráveias à criação, entre si, de um mercado comum. O Brasil, sobretudo, manifestara-se bastante reticente a esta possibilidade desde o final dos anos 50, já que, de acordo com a visão pragmática das relações internacionais que os governos desde então possuíam, especialmente após o golpe de 1964, optou por uma estratégia de inserção internacional que privilegiava a assinatura de acordos de liberalização comercial com um número restrito de países. O objectivo era promover o desenvolvimento económico – principal vector da política externa brasileira – de forma autónoma, por intermédio do modelo de substituição das importações e da manutenção das instâncias intergovernamentais para conduzir o processo de integração. O Brasil entendia que este deveria ser eminentemente comercial e, como tal, encaixava-se como complemento da sua política comercial, subjugada ao interesse nacional de incrementar as exportações de manufacturados para daí obter os recursos necessários à promoção do desenvolvimento económico. A postura argentina era em tudo semelhante. De tal modo que, no final dos anos 60, início da década seguinte, os dois, juntamente com o México, defenderam a manutenção das estruturas intergovernamentais da ALALC, em contraponto à canalização dos esforços da integração para a constituição de um mercado comum, como pretendiam os demais membros, em especial os países andinos. De acordo com a visão da CEPAL, os três apoiavam a integração comercial como forma de ultrapassar as limitações dos respectivos mercados nacionais, para desta forma poderem cooperar com a política de substituição das importações e, assim, alcançar o almejado desenvolvimento económico, sem que para tal tivessem que comprometer-se com níveis mais profundos de integração económica. Por outro lado, a crise económica mundial, desencadeada pelos choques petrolíferos do início dos anos 70, permitira ao Brasil alcançar um nível de desenvolvimento económico superior ao dos parceiros, designadamente da Argentina, ao apresentar uma estrutura eminentemente industrial, que contrastava com a estrutura primária dos vizinhos. Tornava-se evidente o esgotamento do modelo de desenvolvimento assente na substituição de importações, ao mesmo tempo que o relacionamento do Brasil com os vizinhos parecia incipiente . Apenas no início dos 80 esta postura começou a alterar-se e, ainda assim, de forma muito gradual, em razão de factores políticos e económicos, bem como de mudanças na conjuntura internacional. No novo contexto, o estreitamento das relações com a Argentina surgia ao Brasil como uma forma de enfrentar e encontrar soluções para os problemas comuns que assolavam ambos os países, aparecendo a integração bilateral, pela primeira vez, como uma meta desejável. Foram os recém-empossados governos de José Sarney e Raúl Alfonsín a protagonizar a mudança de orientação, trazendo a perspectiva da integração como forma de solucionar problemas comuns a partir de uma perspectiva ainda vincadamente desenvolvimentista e industrial-comercial.
[xvii] A Argentina é muito susceptível aos acenos dos EUA, tendo-se já vinculado ao país por via da associação à NATO e propondo, frequentemente, que o Dólar se torne na moeda argentina e do Mercosul.
[xviii] Já que as perspectivas de alcance do mercado japonês restringiam-se aos produtos primários, enquanto o mercado do Leste europeu era dominado pelas exportações comunitárias, japonesas e coreanas.
[xix] De facto, o objectivo da integração bilateral então introduzido não possuía um âmbito demasiado alargado. Sarney e Alfonsín pretendiam estabelecer um processo de cooperação económica e desenvolvimento conjunto, mas não uma abertura económica acentuada, nem mesmo entre os dois países. Por isso viriam, nos actos jurídicos daí para a frente assinados, no âmbito deste processo de integração, a decidir por uma abordagem sectorial de prazo dilatado – dez anos –, que se referia ao estabelecimento, entre os Dois, de um espaço económico comum, e não de qualquer outra forma mais elaborada de integração. A iniciativa inscrevia-se no contexto de uma economia nacional relativamente fechada, com forte presença do Estado, que desejava enfrentar o desafio da modernização sem romper com o modelo económico vigente, assente nos objectivos da integração industrial e desenvolvimentista, de acordo com os princípios do realismo, do pragmatismo, do equilíbrio e da flexibilidade, em perfeita sintonia com o neoestruturalismo latino-americano. Na verdade, desde 1986, quando haviam sido assinados os doze protocolos bilaterais, o Uruguai manifestara vontade em aderir plenamente ao processo de integração que o Brasil e a Argentina vinham desenvolvendo, de modo a assegurar o acesso privilegiado ao mercado dos seus dois principais parceiros económicos. O Brasil, porém, não apresentara interesse em incorporar plenamente o Uruguai, já que não se mostrava disposto a correr o risco de reproduzir, ainda que em escala menor, a experiência da ALADI, na qual a presença de países de menores dimensões provocara a adopção de um regime de tratamento diferenciado segundo o qual o país, pelas suas dimensão, diversidade e peso económico, tinha que fazer concessões sem reciprocidade. Quando o presidente norte-americano lançou a sua Iniciativa para as Américas, o cenário regional alterou-se de modo favorável aos desígnios uruguaios, já que levou o Brasil a defender a união de esforços de todos os países latino-americanos, como forma de enfrentá-la. Como tal, abandonou a visão restritiva e bilateral da integração, passando a admitir a incorporação, a esse processo, de outros países – desde que estes eceitassem os princípios, as formas e os mecanismos já acordados bilateralmente. Concorreu para a alteração da postura brasileira a orientação institucional-neoliberal de Collor. Defensor da realização interna de reformas económicas assente nos valores neoliberais, Collor havia já manifestado a preferência por concretizar a inserção internacional do Brasil através da incorporação, ao processo de integração, de outros países, designadamente o Uruguai, cuja pressão crescia marcadamente. Na Argentina, já Alfonsín manifestara esse desejo – que Sarney repudiava –, em razão do estreitamento da cooperação argentino-uruguaia em torno da Bacia do Prata, o que acabaria por levar à aceitação da incorporação de outros países ao processo de integração inicialmente bilateral. A 1 de Agosto de 1990, o Uruguai era, então, convidado a juntar-se aos esforços bilaterais de integração. O Paraguai viria por arrastamento, conformando em quatro o número de membros do mercado comum que a seguir seria criado. O objectivo formal e expresso de criar, entre os Dois, um mercado comum, apenas em 1988 viria a ser enunciado, quando as condições internas de ambos os países haviam já evoluído em sentido mais favorável. Sobretudo, a partir de 1990, quando a conjuntura internacional daria o impulso que faltava.O anúncio, em Junho de 1990, da proposta do presidente George Bush, da Enterprise For The Americas Initiative, foi de facto determinante, pois vinha juntar-se ao NAFTA em matéria de relações económicas hemisféricas, alterando possivelmente os equilíbrios que se procuravam construir, ao mesmo tempo que os EUA reforçavam as tentativas de intervenção na região, lançando um Plano Colômbia que vinha adensar, militar e politicamente, a proposta de Bush
[xx]Configurando um processo de integração quadrilateral centrado sobre o eixo Brasil-Argentina, sua espinha dorsal, o processo de integração da América do Sul preparava com celeridade a alteração político-económica da região. O paradigma do Estado Desenvolvementista dava os últimos suspiros. A iniciativa de cooperação que tinha início era enquadrada no âmbito de uma nova fase de crescimento autónomo, amparada na força da integração. A nova modalidade de desenvolvimento estendia para fora das fronteiras nacionais a acção tradicional do Estado, ao procurar adaptar, de forma racional, o paradigma desenvolvimentista, de maneira a ultrapassar os factores negativos que esse modelo começava a apresentar.E as vantagens não tardariam a tornar-se visíveis, especialmente para o Brasil, cuja dimensão continental saía amplamente beneficiada. Efectivamente, dos 235 milhões de habitantes que, em 2005, compunham o Mercosul, 79% são Brasileiros, 17% Argentinos, 4% Paraguaios e apenas 1% Uruguaios. Por outro lado, o Brasil, com 8,5 milhões de quilómetros quadrados, ocupa 72% da extensão territorial do Mercosul, enquanto a Argentina, com 23% do total e os dois outros Estados-parte com 583.000 de quilómetros quadrados, ocupando apenas 5% do território total do Mercosul. A nível produtivo, as assimetreias são ainda mais acentuadas. No mesmo ano, o Brasil, com uma produção de USD 1 461 564 milhões, respondeu por 72% da produção total do Mercosul, enquanto a Argentina, com USD 484 232 milhões, contribuiu com 24%, o Paraguai, com USD 27 581 milhões, contribuiu com apenas 1% e o Uruguai, com USD 30 958 milhões com 2%. Finalmente, é de salientar o desquilíbrio geopolítico, já que, enquanto o Uruguai apenas faz fronteira com o Brasil, o Paraguai com o Brasil, a Bolívia e o Chile, o Brasil, por seu lado, apresenta ligação fronteiriça com o Uruguai, o Paraguai, a Argentina, a Bolívia, o Peru, a Colômbia, a Venezuela, a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa, possuindo, ainda, interesses na África Austral, não obstante as dificuldades económicas com que o Brasil continuava a deparar-se, com planos de estabilização que se sucediam uns aos outros sem grande margem de êxito e que afectavam seriamente o sucesso do Mercosul.
[xxi] Resultando menos dos laços de interdependência existentes entre as economias dos seus membros – com excepção da argentina e da brasileira – do que da tentativa de buscar, na integração, um meio de enfrentar o desejo hegemónico norte-americano sobre o quintal latino-americano, o Mercosul viu-se desde logo preso a uma visão demasiado conjuntural da crise, que haveria de privá-lo de uma política económica consistente e planificada, aspecto fundamental que determinaria, em muito, os desequilíbrios por que este processo passaria desde o início e que se somariam às assimetrias regionais internas, originando o desenvolvimento de um esquema económico clássico, de acordo com o qual o país mais industrializado – o Brasil – exportaria fundamentalmente produtos com grande percentagem de incorporação de capital, enquanto os restantes – numa primeira escala a Argentina, e numa segunda o Uruguai e o Paraguai – proviriam o bloco de produtos primários. A migração de empresas argentinas para o território brasileiro reforçaria esta tendência, já que ampliaria a escala de produção e de exportação do Brasil, perpetuando as assimetrias. Enredado nestas dificuldades estruturais, que exigiam uma resposta política activa e integradora, que não existiu, o MERCOSUL acabou enveredando pela conclusão de inúmeros acordos intergovernamentais específicos para cada área, cujo conhecimento, restrito, mantê-lo-ia afastado da sociedade civil.
[xxii] A ALCA era necessária para os objectivos de longo prazo dos EUA como estratégia para controlar o Mercosul, impedindo a sua autonomia, bloqueando a sua associação com outros blocos e tornando irreversíveis os planos de ajuste implementados ao longo dos anos 90. Mas sem o apoio do país central da América do Sul, levando consigo todos os outros, a ALCA não poderia ser criada com êxito.
[xxiii] Assentando no petróleo, a ligação Brasil-Venezuela viu-se seriamente prejudicada pela crise da década de 1980, a qual, conduzindo a uma deterioração das relações bilaterais, levou à diminuição dos contactos comerciais entre os dois países e à crescente disparidade de crescimento económico entre ambos. Por outro lado, a integração a Sul, assente no comércio, dava resultados mais rápidos, parecendo ser mais profícua do que a ligação Sul-Norte que, baseada no sector produtivo, apenas o tempo poderia vir a julgar com propriedade. A integração Brasil-Venezuela abria, deste modo, a perspectiva de criação de grandes empresas brasileiro-venezuelanas ligadas, directa ou indirectamente, ao petróleo, enquanto a integração Argentina-Brasil abria a perspectiva de um grande mercado consumidor. De resultados mais imediatistas, a integração desenvolvida a partir do eixo argentino-brasileiro parecia ter mais êxito do que a levada a cabo pelo Brasil e pela Venezuela, o que acrescentando-se às dificuldades desta, em muito terá determinado o progressivo desinteresse na mesma por parte do Brasil, centrado sobre o MERCOSUL, o qual, caminhando comercialmente, previa, já, passos em sectores de maiores sensibilidades nacionais, de modo a aprofundar o nível de integração entre os Estados-membros, até esbarrar na crise argentina deflagrada no final de 2001, ainda que o presidente Lula tenha tentado, desde a tomada de posse, ressuscitar o eixo Brasília-Caracas.
[xxiv] Desde logo, a principal fonte de oposição provém do próprio PT, da ala mais à esquerda, que tem criado imensos problemas ao governo, tornando-o cada vez mais dependente dos partidos do centro e da direita. Por outro lado, o funcionalismo público, seriamente afectado pela reforma da Segurança Social, tem-se mostrado profundamente descontente, assim como o empresariado, que embora aliviado por o governo Lula não se mostrar esquerdizantemente revolucionário como se temera, começa a manifestar sinais de irritação quanto à demasiada rigidez monetária e fiscal. Mesmo as organizações sindicais de apoio ao governo – a CUT e os sindicatos filiados – têm-se mostrado insatisfeitas com a actuação económica de Lula. Neste mesmo contexto, a orientação económica amplamente liberal do governo Lula tem criado dificuldades aos partidos da oposição – Partido da Social-Democracia Brasileira, PSDB, e Partido da Frente Liberal, PFL –, que haviam sido essenciais na base de apoio do governo anterior, em adaptar-se ao seu novo papel na vida política brasileira.
[xxv] É bem verdade, também, que Fernando Henrique Cardoso, ao chegar ao governo, encontrara, como legado de Itamar Franco, a transição da política externa brasileira do terceiro-mundismo para o pró-ocidentalismo, o que engloba, justamente, esse tempero político colocado sobre o carácter significativamente comercial da inserção internacional do Brasil.
Assim, os objectivos primordiais da acção externa do Brasil na era Cardoso, herdados da época anterior, haviam sido a aproximação do país às Nações Unidas, propondo a sua própria candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança, na concretização do assumido papel de potência média mundial e o aprofundamento das relações com a América do Sul no seio do Mercosul e, especialmente, com a Argentina, que Lula viria reforçar.
[xxvi] Embora os formuladores da política externa do novo governo tenham sempre defendido a importância da América do Sul como cenário de acção do Brasil, a verdade é que a acção concreta da Administração Lula não tem feito jus aos objectivos inicialmente propostos. A realidade tem ficado muito aquém das expectativas em matéria de aprofundamento e alargamento do MERCOSUL. A actuação do Executivo Lula tem desiludido os mais acérrimos defensores – incluindo a intelectualidade de esquerda, hoje dividida entre aqueles que criticam o conservadorismo de um governo de esquerda e os que oferecem um apoio de tipo personalista ao histórico dirigente trabalhista – em quase todos os quesitos e a política externa não tem escapado às críticas, centradas sobretudo no tom arrogante e altivo que o país tem assumido face ao exterior de que tanto depende. Na verdade, é interessante notar como o governo Lula tem surpreendido e desconcertado. Antes de mais, faz-se mister atentar sobre o significado da vitória do Partido dos Trabalhadores – o histórico PT – nas eleições presidenciais de Outubro de 2002. É evidente que tal representa um avanço surpreendente no processo brasileiro de democratização, iniciado décadas atrás. Sobretudo, é elucidativo desse avanço a cooperação registada, durante o período de transição, entre o novo e o cessante governos. Comum e normal em países de consolidada e arraigada tradição democrática, este facto constituiu algo de inédito na história do Brasil. Por outro lado, a vitória do PT e, concretamente de Lula, demonstra um comportamento inovador por parte do eleitorado brasileiro, tradicionalmente adepto de partidos e personalidades ligadas ao centro-direita da vida política do país. Este facto, por si, pode ter dois significados. Um deles, positivo, demonstra certamente uma versatilidade nova do eleitorado brasileiro, capaz de escolher, para seu representante máximo, uma personalidade oriunda, não das elites tradicionais ou da classe média-alta culta, mas um líder sindical que, não só reivindica defender os interesses dos trabalhadores, como deixa transparecer com clareza os sinais da sua modesta origem social. O outro significado, negativo, resulta da interpretação deste facto como uma manifestação evidente, e preocupante, do desgaste da vida política brasileira. O eleitorado, profundamente descontente com a política brasileira, os resultados práticos e concretos que a mesma tem vindo a ter em matéria de melhorias para o país, decidiu, votando em Lula, tornar público o seu descontentamento e assim manifestar o desejo de mudança que há muito vinha sendo fermentado. Por outro lado ainda, Lula fez-se eleger prometendo um diálogo ininterrupto com todos os segmentos da sociedade civil e política do país – elemento tradicional da orientação do PT desde os anos 80, que se mostraria determinante para a vitória, já que se contrapunha às propostas de governo eficiente do principal adversário. A promessa de ampliação da participação política da sociedade permitiu essencialmente ao PT conquistar os votos da classe média e anular a oposição do empresariado – mantendo-se após a vitória por necessidade evidente de apoio de um governo de fraca base parlamentar, cuja capacidade para fazer aprovar as reformas que deseja realizar depende da conformação de apoio que consegue angariar. É evidente que a vitória de Lula apenas só ocorreu graças à evolução do discurso político-partidário do PT. Fugindo à retórica socialista defensora exclusiva dos interesses dos trabalhadores, o PT aproximou-se dos valores e do discurso próprios do establishment brasileiro, construindo uma plataforma programática muito semelhante à oferecida pelo principal adversário na corrida presidencial. Contrariando a esquerda do partido – hoje apelidada de esquerda radical – e aproximando-se da ala liberal-desenvolvimentista do governo de Fernando Henrique Cardoso, o PT de Lula, ante a necessidade de construir uma coligação governamental, aproximou-se do centro, aliando-se ao Partido Liberal e fazendo de José Alencar vice-presidente do partido; e aliou-se à direita, erigindo entendimentos com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e com o Partido Popular (PP), último vestígio da extinta ARENA, partido governamental que sustentara o regime militar instaurado pelo golpe de 1964. O recém empossado governo Lula intentou, ainda, recuperar figuras públicas nacionais marginalizadas, por forma a retirar apoios ao candidato oficial de Cardoso, José Serra. Na verdade, uma vez em funções, o governo Lula apresentou, como principal característica, uma continuidade total relativamente ao governo anterior, mantendo a orientação política liberal assegurada durante o primeiro governo Cardoso e confirmada por sua reeleição em 1998. Perdendo algumas das suas funções empresariais, o Estado manteve, todavia, a sua capacidade de regulação peral, equiparando o capital estrangeiro ao doméstico, absorvendo grande número de empresas estatais de serviços públicose parte das manufacturas nacionais, enquanto privatizou os principias bancos estatais e mantuve a abertura ao comércio externo, designadamente relativamente ao Mercosul, desde logo eleito como principal linha de orientação externa do primeiro governo Lula. Para tanto se identificam, não raras vezes, para sistematização, duas fases do governo Cardoso, diferenciadas pelas orientações económicas que guiaram uma e outra. A primeira, correspondente ao primeiro mandato, de 1995 a 1998, foi a fase em que se procurou assegurar a estabilização monetária – alcançada graças ao lançamento do Plano Real, em Julho de 1994 –, através de uma política fiscal pouco rigorosa e do recurso ao câmbio semifixo. Esta política económica, próxima de um verdadeiro fundamentalismo de mercado, mostrou ser bastante prejudicial ao sector produtivo, além de ter aumentado o endividamento do sector público e a fragilidade financeira do país. Assolado por crises financeiras que se sucederam na cena internacional de 1994 a 1998, o Brasil viu-se seriamente afectado, tendo o governo Cardoso que recorrer ao Fundo Monetário Internacional em Novembro de 1998 e, em Janeiro do ano seguinte, fazer flutuar o câmbio, por forma a conter a fuga de capitais e a preservar as reservas internacionais do país. A um mês do início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), começa a segunda fase. E, nesta, as opções tomadas no final do período anterior manter-se-iam como marcas da política económica. Assim se procedeu à substituição do câmbio semifixo pelo regime de câmbio flutuante e começou a aplicar-se uma política fiscal rigorosa, submetida a forte ajuste fiscal e estrito sistema de metas inflacionárias. Bastante mais favorável ao sector produtivo do que a política económica aplicada no período anterior, a nova orientação económica do governo Cardoso aproximou-se do que podemos sem grande dificuldade nomear de liberal-desenvolvimentismo. Ainda assim, o crescimento económico do país não atingiu níveis satisfatórios e foi bastante irregular, com taxas de desemprego muito elevadas.